quinta-feira, 28 de outubro de 2010

algodão doce




Meus avós, pais de minha mãe, eram pessoas muito pobres. Ele veio da Italia, entre 1905 e 1910. Embarcou em um navio no porto de Veneza, filho de agricultores, como muitos que vieram depois da abolição dos nossos escravos. A familia viveu e trabalhou em uma fazenda na região de Campinas. Ela, nasceu em uma fazenda em Campinas, filha de imigrantes italianos. Ambos trabalharam na lavoura de café e de cana e quando se casaram  tiveram sete filhos - pelo menos eu creio que foram sete.
Desconheço maiores detalhes, o que é uma pena. Entendo que o fato de mamãe ter falecido muito cedo causou essa falta de maiores informações, pois ela deixou de nos contar fatos importantes.
Naquela época não havia aposentadoria para o trabalhador rural. Quando ficavam velhos, ficavam também sem rendas, dependendo de filhos ou prestando pequenos serviços para sobreviver. Havia muita dignidade na pobreza de então. Obviamente não haviam favelas, o pobre vivia em casas muito modestas, precariamente mobiliadas, geralmente pagavam aluguel.
Enquanto jovem, vovô trabalhou na terra. Mais tarde, já na cidade, procurando vida melhor para os filhos, trabalhou em uma olaria, serviço pesado, úmido.  Quando a velhice bateu à sua porta, deixou a olaria e fazia jardins, cuidava das flores, gramas, plantava árvores. Como o dinheiro era pouco, resolveu melhorar a renda vendendo pipoca em um carrinho que estacionava em frente às escolas, igrejas, praças. No tal carrinho haviam doces também, e me recordo que em certa ocasião, ele fazia algodão doce. Não me lembro bem da ordem das coisas.
O que me lembro é que ele era um encanto de velho. Olhos de um azul tão claro, que olhando de longe pareciam brancos. Sempre de camisa de algodão, sem colarinho, abotoada no pecoço. As calças remendadas por minha avó, davam a impressão que iam cair - ele as usava sem cinta - alpargatas no pé...
Aos domingos, para ir à missa, a camisa branca, calça listrada de preto e cinza, paletó preto, sapatos.
Era sempre a mesma roupa aos domingos. Tenho certeza de que não havia outra.
Quando mamãe faleceu ele continuou nos visitando aos domingos. Era uma delicia ve-lo chegar a pé  - e era bastante longe - sempre depois da missa, bolsos cheios de balas, sorriso delicioso de dentes perfeitos, invejáveis naquela idade. Sentava os menores no colo, perguntava sobre tudo, brincava de cavalinho, sanfoninha, ria alto, abraçava.
Mesmo quando meu pai casou-se novamente ele continuou indo aos domingos de manhã. Acredito até que minha irmã, filha de minha madrasta, lembra-se dele.
Apenas um problema:- gostava de beber. Só bebia vinho, em qualquer ocasião. Naquela época os bares serviam vinho no balcão e como vovó não deixava que ele levasse a bebida para casa, tomava no bar, e chegava em casa, invariavelmente, bêbado. Era um bêbado divertido, que ria de tudo, inclusive das broncas da mulher, o que deixava vovó furiosa.
Pronto, cheguei onde estava querendo chegar. Como minha avó administrava com mão de ferro as finanças da casa, controlando tudo o que entrava com a venda dos doces e os trabalhos nos jardins, meu avô descobriu uma maneira de beber seu vinho sem ter que pedir dinheiro a ela.
Quando andava pelas ruas da cidade, pegava papel e  papelão achado pelo caminho, dobrava e carregava amarrado nas costas. Vendia esse papel em um depósito e com o dinheiro bebia vinho no bar.
Eu, com apenas 15 anos trabalhava nos escritorios de uma grande empresa da cidade.  Os menores podiam e deviam começar a trabalhar cedo, e comigo não foi exceção. Um dia, de minha mesa de trabalho, ouvi comentários e risos dos rapazes desenhistas, que tinham suas pranchetas ao lado das janelas do salão.
Curiosa saí para dar uma olhadinha e vi meu avô lá embaixo - estávamos no primeiro andar -  com um punhado de papelão amarrado às costas e tentando pegar uma caixa vazia que teimava em rolar com o vento.
Os rapazes riam e comentavam - olha o sacrificio do velho!
                                                 - coitado, já não tem idade para isso...
                                                  - não tenha pena, deve ser para beber pinga!
E eu, no alto dos meus 15 anos, virei-me e voltei para minha mesa.Se ficasse mais algum tempo observando talvez ele olhasse para cima e me visse, talvez acenasse... para mim teria sido muito humilhante dizer que era meu avô. Não tive coragem, fui covarde e infantil.
Nunca esqueci essa imagem, nunca contei para ninguém. Hoje resolvi escrever porque já me perdoei.
Eu não tinha maturidade para encarar os meninos naquele dia, e nem para contar para a familia ou amigos depois de anos.
Sei que ele me perdoaria rindo e me dando um puxão de cabelo ou um tapa na bunda. Era sua maneira de dizer "te amo", aquele amor sem cobrança, sem broncas, sem presentes, mas enorme como seu sorriso.
Eu precisava do MEU perdão e esse é muito mais dificil, mais dolorido.
Vovô faleceu de uma doença decorrente da bebida.  Ele tinha uns sessenta e seis anos, eu dezessete. Ficou uma saudade doce, suave, alegre, como os algodões-doces que a gente comia e se lambuzava diante de seu carrinho que tinha uma lamparina de azeite para clarear por dentro. Velho lindo e feliz, é assim que me lembro de você...um brinde com o melhor vinho italiano,  pela tranquilidade dessa neta que ainda te ama. Tim-tim......

12 comentários:

  1. Nossa mãe!Essa eu não conhecia ,infelizmente acho que é mal de família ouvir essas coisas de pessoas pobres de espírito e infelizes e não reagir ou se defender.
    Ou é boa educação e não se rebaixar á essas pessoas.Tenho certeza que seu avô era esse ser superior e sabia do seu amor por ele.beijos

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  2. Será que algum dia lerei alguma linha sua que não goste, Ivani? Seus textos tem vida. São como aqueles filmes de suspense em que prendemos nossa respiração e só lembramos de retomá-la no final da cena!!!
    Um brinde à ele à vc à nós!! Beijos!!! Bela.

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  3. Já ouviu a frase "Você é responsável pelo que cativa?". Pois é... eu acho que foi uma opção sábia você ter se afastado daquela janela...Já pensou se ele tivesse te visto? Tente mudar o anglo, e se coloque no lugar dele...A vergonha dele seria muito maior do que a sua tristeza, afinal ele é e sempre será o vovô com cheirinho de doce!

    Beijos
    Sabia decisão a sua

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  4. Na vida passamos por momentos e momentos !!! deu para entender? "se arrependimento matasse eu já estava morto faz tempo" mentira!!!! sempre agimos da melhor forma possível, não fazemos nada premeditado, caso ocorra isso, aí sim seremos uns canalhas. Ivani o que você escreveu sobre o vovô foi muito lindo, ele realmente foi tudo aquilo.Bem!!!!vamos falar de coisas boas, beber! beber!beber!, rir, rir, rir,acho que eu sei quem puchamos, italianada ZANON.
    BEIJOS

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  5. esqueci de colocar na postagem o nome de meu avô.
    Ele chamava-se João Domingos Zanon. Bonito né?
    obrigada pelos comentarios, pelo carinho, adoro ler o que vocês escrevem. Beijo

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  6. Às vezes algumas situações nos pegam de surpresa...e nessa hora não sabemos como reagir. E depois ficamos nos lamentando: - eu devia ter dito isso, devia ter feito aquilo...mas na hora, parece que somem as palavras!
    O mais importante é a atitude, e tenho certeza de que você sempre demonstrou carinho por ele!
    E ele, lá do alto, está recebendo as energias positivas desta linda homenagem!
    Beijos, beijos e beijos!

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  7. Ah... como ele era lindo!!!! eu me lembro perfeitamente do vô Zanon, um par de olhos que eu nunca mais esqueci, ele sentava em uma cadeira na porta da cozinha, eu sempre estava no colo dele, minha mãe gostava muito dele, e meu pai tambem, e olha que voce conhece muito bem o pai...nunca vi homem tão justo, justo em todos os sentidos, voce sabe...agora quanto ao que aconteceu no seu trabalho só posso dizer minha irmã maravilhosa duas coisas: primeira com relação aos meninos:
    "QUEM NÃO É PRECONCEITUOSO? portanto não devemos julga-los. Com relação a sua atitude:QUEM NÃO SENTIRIA VERGONHA EM UMA SITUAÇÃO DESSA INDEPENDENTE DA IDADE QUE SE TENHA" e "QUAL MENINA DE APENAS 15 ANOS SABERIA DEFENDER PESSOAS QUE SOFREM PRECONCEITO"? portanto tambem neste caso não devemos julga-las... então querida voce demorou muito para se perdoar... antes que me esqueça-Se perdoar mesmo de que?

    Mil beijos,

    Sua irmã tambem maravilhosa

    Eliana Camargo

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  8. Ah Ivani descobri... a minha adoração por vinho vem dele né? Que herança MARAVILHOSA!!!!

    Beijos

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  9. Então, eu acho que você herdou isso dele mesmo. Que conversa de loucos essa, afinal ele nem era seu avô de sangue, apenas de afeto.
    Agora...eu tinha me esquecido de sua maior qualidade: a modestia!
    Você é uma pessoa com um alto grau de modéstia...
    de quem herdou?
    beijo

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  10. Se o Leo é canhoto por herança sua, porque não posso ter herdado do vô Zanon o BOM gosto pelo vinho!!!

    E realmente sou muito modesta, isso não sei de quem herdei...devo dizer que voces são muito metidos...

    Beijos

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  11. Parabéns pelo dom que você tem de colocar tanta emoção em palavras! Também tenho uma ascendência de imigrantes italianos e revivi a história de meus antepassados através da sua. Me emocionei!
    Obrigada.

    Beijos,

    eneida

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  12. Que bom que o tempo de se perdoar chegou. Não somos seres perfeitos, estamos aprendendo enquanto na terra. Podemos ter a meta de nos tornarmos pessoas melhores, ou não. Quando a gente se perdoa por algo que fizemos, ou deixamos de fazer, é uma atitude libertadora, e assim conseguimos caminhar + levemente e nos tornamos pessoas melhores.
    Como sempre você escreveu um lindo, simples e profundo texto.
    Um grande abraço minha amiga e tenha um bom final de semana.

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