terça-feira, 15 de novembro de 2011

Um quintal


Vou chama-lo de Anjo. Nunca me perdoarei por esquecer o nome real.  Se no decorrer das lembranças uma luz brilhar nessa velha cabeça com seu nome de batismo, escreverei imediatamente.
Era dono do quintal mais cobiçado do bairro. Toda a frente do terreno era ocupada por uma horta, um pequeno pomar, uma plantação de ervas medicinais e um jardim. Sim, tudo isso no quintal!
A pequena casa onde vivia com a mulher ficava nos fundos, mal se via da rua. O terreno, com leve inclinação para o alto era cercado com madeira, finas tábuas enfileiradas, e um pequeno portão que ao abrir nos dava passagem para um caminho de terra sinuoso e fresco, até o pequeno terraço.
Nesse terraço um poço de água potável,  um tanque de lavar roupas e uma pequena mesa onde repousava um filtro de barro para deixar a água mais limpa e fria. Ele insistia para que tomássemos da água,  em caneca de alumínio, tão fresca...
Tinha uma filha apenas, enfermeira de um grande hospital em São Paulo, muito pouco a víamos.
Mas vamos nos ater ao quintal. Uma grande árvore, próxima ao portão, refrescava a casa e o quintal nos dias quentes.
As verduras da horta, couves, alfaces, escarolas, cheiro verde, almeirão, eram vendidas a preços mínimos para os vizinhos, apenas para custear  mais sementes. As flores...ah! as flores!
Eram dálias, lirios, rosas, cravos, que enfeitavam a beirada da cerca e que ele colhia com prazer para  decorar a mesa de um casamento, ou para que as crianças acompanhassem  um enterro cantando hinos e carregando os pequenos buquês nas mãos.
Os pés de limão, laranja, ameixa, amora... que todos tinham também em seus quintais,  floriam e davam frutos.   Para quem pedisse ele colhia de mãos cheias, pois perdiam-se os frutos entre as flores e verduras.
Mas o que mais tenho gravado na memória é o canteiro de ervas medicinais. Perdoem-me, nunca conseguiria lembrar-me de todas. Mas algumas sim:- erva-doce, camomila, boldo, hortelã, carqueja, losna, bálsamo, e tinha uma ervazinha danada de amarga, a marcelinha,  ótima para digestão difícil.
Eram tantas que ele cultivava e dava aos punhados para quem estivesse precisando de um chá ou um emplasto.
Mas o meu Anjo não era só isso. Ele aplicava injeções, acredito que treinado pela filha,  em pessoas que estavam acamadas e não podiam ir até a farmácia. E é nesse momento da narração que me emociono e tenho as lembranças mais vivas.
Quando minha mãe estava muito mal, quase nos deixando, suas dores eram extremas e apenas um tipo de injeção a deixava tranquila.
Nosso Anjo era então chamado às pressas e aplicava-lhe o grande alivio. Olhava em volta e dizia para mim, a mais velha das crianças:-  pode me chamar quando precisar, seja qual for a hora.
Nos ultimos dias papai me acordava aflito, não raro o Edison me acompanhava  pela  rua em altas horas da madrugada para voltarmos voando sobre as asas do Anjo.
Ele nunca reclamou e nem cobrou um centavo pelas aplicações.
Muitos anos se passaram, já nem morava mais naquela cidade, quando soube de sua morte.
Inúmeras vezes visitei o bairro e passei devagar em frente ao quintal.  Agradecia  baixinho todo o carinho e devoção. Hoje há uma casa grande sobre tudo o que houve por lá. Tudo mudou. Até o verdadeiro nome dele eu tive a ousadia de esquecer.
Mas nunca esquecerei seu rosto bom, sua caixinha de aço com as seringas, sua pressa em vir correndo comigo, pelas noites escuras, pelas ruas de terra.
Esse Anjo e esse quintal eu jamais esquecerei. Que seja abençoado seu descanso. Amém!
   

    

14 comentários:

  1. Lindo quintal com as mais belas lembranças. Quintais esses que já não mais existem nas grandes cidades de excesso de cimento.
    Beijo

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  2. Ivani, amiga querida. Amém, amém, amém. De que importa o nome do Anjo. Deus sabe e o tem como hóspede.
    Aquela aguinha, fresca e natural, tomada com a caneca de alumínio... estou até sentindo o sabor.
    Um amor essa homenagem ao quintal do nosso amigo Anjo. Adorei a postagem.
    Um carinhoso beijo "republicano", rs...rs.
    Manoel.

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  3. LIndo esse teu rlato e jeitinho de nos contar.

    Esse ANJO certamente sabe que [é pra ele, ainda que não tenhas lembrado o nmome e de onde está, te sorri...

    Belas lembranças, tão puras e boas!!!


    Adorei! E como vão os trabalhos???
    Deu pra fazer ou a chuva chegou???

    beijos,chica

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  4. Bonita postagem mãe.
    Ele foi ( ou é ) realmente um anjo, que ajudou sua família em tempos doídos e sem nenhuma pretensão...só amor.
    Hoje esses quintais são mais raros e esses anjos, não sei se ainda existem!
    Mas amém para ele e para a bondade que ele semeou, juntamente com suas flores e frutas...

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  5. Ivani, termino de ler seu relato emocionada com os olhos marejados e com o perfume de todas essas ervas... parece que vivi a história contada por ti, pude caminhar por esse seu quintal, tão cheio de vida, de energia desse anjo que certamente estava nessa vida para ajudar...
    Lindas lembranças, obrigada por partilhar algo que embora seja triste pela dor da sua mãe ao mesmo tempo tem uma relação de amizade tão bela...
    Beijo grande no seu coração.
    Su.

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  6. IVANI,VC É MESMO ESPECIAL!!TEU RELATO ME LEVOU AS LÁGRIMAS!!MEU DEUS!!QUANTAS LEMBRANÇAS GUARDAMOS AO LONGO DE NOSSAS VIDAS!!BJS!

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  7. QUE LINDO, ANTONIA IVANI!!!!!
    PALAVRAS CERTAS PARA PESSOAS CERTAS, TÃO BOM QUANDO MESMO NÃO LEMBRANDO DO NOME, LEMBRAMOS DAS PESSOAS E DO SEU JEITO, ASSIM PARA DESCREVÊ-LOS AS PALAVRAS SAEM FACILMENTE DO NOSSO CORAÇÃO. NOMES SÃO IMPORTANTES, MAS OS SENTIMENTOS SÃO MAIS! E SUS SENTIMENTOS SÃO SINGELOS E AFETIVOS. LINDO E EMOCIONANTE RELATO. AMEI SABER DESTA HISTÓRIA!
    BEIJINHO AMIGA QUERIDA!!!!
    E POR AÍ, COMO ESTÃO AS COISAS? NETAIADA, FILHARADA... E O TELHADO?

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  8. Mais uma história emocionante...que linda...

    Oi, Ivani querida! não te esqueci não! fim de ano pra mim é uma grande correria no trabalho. Fico torcendo pra passar logo (risos).

    Um beijo com saudades

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  9. Queridinha

    Lembro perfeitamente da casa do Sr.Isidoro, igualzinha como você descreveu, foi um excelente homem realmente ele era um anjo.Deixa eu registrar uma passagem que eu nunca esqueci....certo dia estava ameaçando uma chuva e a minha querida Regina foi buscar umas verduras na casa dele para a Professora Alice...começou a chover e a professora pediu para eu ir levar a sombrinha para a Regina, na volta nos dois sob a sombrinha a Regina pegou no meu braço,,,,,quase desmaiei de tanta emoção e tremia igual uma vara verde....isso sim que foi paixão...

    Beijos

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  10. Quanta doçura,quanto carinho em suas palavras,minha querida.Olha,Ivaní,o nome,neste caso é o que menos importa,já que ele era mesmo um anjo,caido do céu por acaso...muitos são os que habitam este mundo e vocês encontraram um.

    Também em nossa família tivemos um anjo,de cabeça branca como a neve e que se chamava Dr.Evaristo.E você me fez recordar,das noites chuvosas em que eu,criança ainda,ia até sua casa
    buscá-lo para socorrer meu irmão,sempre muito doentinho.Graças a ele meu irmão é hoje também um médico que se compadece de seus pacientes.

    Ivani,você escreve com a alma na ponta de seus dedinhos...pude até ver a menina aflita indo em busca de seu ANJO.

    Bjssss carinhosos,amiga,
    Leninha

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  11. Lindo o teu texto, o teu anjo faz-me lembrar a minha avó paterna (já tenho falado dela no blog. Tantas saudades eu tenho dela, tantas vezes me lembro das coisas que ela fazia a mim e ao meu irmão, eu por vezes penso que ela e o meu filho estão lá no céu a olhar por mim...
    Beijos grandes.

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  12. Eita Ivani! Acredito em Anjos também...tive alguns em algumas passagens da vida, e uns mais especiais quando a Bia esteve doente...acho que não dá pra esquecer, provavelmente esquecerei do nome como você...

    Depois li o comentário do Edison e não pude deixar de rir...esses amores!! Bjo querida:}

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  13. Olha Ivani, quero q saiba que o que lhe escrevo é profundamente real. Amo de paixão ler seus textos. São tão vivos, tão cheios de emoção. É como ler um belo livro, a gente sente e participa de todas as emoções vivenciadas pelos personagens.
    Muito obrigada por essa chance q me dá, mesmo q por alguns poucos minutos, de mergulhar em tanta emoção.

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  14. Amém, Ivani, amém. Bons anjos de outros tempos.
    Mas não falei que tinha cheirinho de Nina Horta no ar? De temperos e de frutas? Eu sabia!
    Abraços, querida, ótimo domingo.

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