
Bastava atravessar a rua.
Na vila operária onde morávamos, em Osasco, anos 50, as casas eram simples, porém confortáveis e bonitas.
Eram casas rente à rua, com a porta da sala abrindo para a calçada. Feitas em tijolo vermelho, aparentes, com as janelas e portas pintadas em branco. Sobre a porta da sala um pequeno telhado protegia do sol e da chuva.
As fotos acima são do local, atuais, com as casas já alteradas, mas mantendo o charme.
Apenas uma rua, simples e bela rua. Muitas árvores com bancos sob a sombra, onde brincávamos e os adultos sentavam-se para um papinho no fim de tarde.
Ali moravam apenas funcionários que deveriam estar sempre perto da industria para qualquer eventualidade fora do horário.
Eram encantadoras aquelas casas e moramos por alí um tempo delicioso de nossas vidas, quando minha mãe ainda estava conosco, e todo o universo conspirava a nosso favor.
A escola era próxima, dois quarteirões, que eu e o meu irmão Edison percorriamos entre brincadeiras e correrias com amigos, também filhos de funcionários.
O terreno baldio ao lado da vila era campo de futebol, espaço para soltar pipas, jogar pião, brincar de bolinha de gude, enfim, era a alegria da molecada.
A noite a rua era nossa, com correria de pega-pega, brincadeira de roda, esconde-esconde, amarelinha.
Mas como eu disse lá no começo, bastava atravessar a rua...e a casa em frente me fascinava.
Todas eram iguais, mas aquela casa era especial. Ali morava uma menina, filha única, de um casal lindíssimo.
A mulher alta e bem vestida, tinha sempre os cabelos impecáveis e usava um avental na cintura. O marido, saia para o trabalho tão bem arrumado, que eu não acreditava que era funcionário da mesma emprêsa, uma metalurgica.
Com os anos vim a entender que ele trabalhava na administração, portanto, vestia-se melhor. A menina então, era uma princesa.
Os laços de seus cabelos eram sempre os mais lindos, e seu uniforme de uma escola particular, de freiras, era tão diferente dos nossos...
E bastava atravessar a rua, mas ela nunca brincava conosco, nunca sentava-se no banco de cimento, e sua mãe não permitia que ficasse muito à janela para não tomar "friagem".
Lembro-me dela como um bibelô, delicado e pálido, saindo apenas com os pais. Acenava para as crianças da rua, mas nunca brincava conosco.
Aos domingos íamos ao matinê, assistir ao filme principal e ao seriado semanal, divertido e imperdível.
Ela não, nunca foi.
Muitos anos mais tarde, todos nós adultos, cursando o colégio á noite, descobri com muita alegria que fazíamos o mesmo curso. Ela estava ainda linda, com a pele muito clara, cabelos louros, feliz.
Contou-me que tinha muita vontade de brincar conosco, sentia muita saudade das gargalhadas que ouvia da sala, dos gritos de "peguei" ou "estátua", ou das cantigas de roda.
Não julgava a mãe, mas disse-me que perdeu boa parte da infância por culpa dos pais super protetores.
Casou-se com um amigo nosso, um rapaz bonito e querido, disputadíssimo entre as garotas do colégio.
E foi na gravidez do primeiro filho deles que a doença dela se manifestou. Tão violenta, tão implacável, que ela não resistiu. Salvaram o bebê, um menino, que o pai, em grande desespêro, deixou com os avós e foi trabalhar em outro país, acreditando que essa atitude o faria esquecer o grande drama que estava vivendo.
Pobre menina linda, pálida e só. E pobre bebê, sem mãe e sem pai, sendo entregue ao casal impecável e perfeito, ávido por dar ao neto todo o carinho antes canalizado para a filha.
Triste destino esse, mundo cruel e sem explicação, sem justiça e sem noção.
Sinto muita saudade daquela época, das casas e dos amigos, mas não consigo esquecer que bastava atravessar a rua para perceber a grande diferença entre felicidade e solidão.

fotos tomadas por empréstimo do blog : contandohistorias-osasco.blogspot.com
de José Luiz Alves de Oliveira